“O escrete é a pátria em calção e chuteiras. Ele representa os nossos defeitos e as nossas virtudes (…) cada gol do escrete é feito por todos nós.”
Nelson Rodrigues, “Flor de Obsessão”, Companhia das Letras, São Paulo, 1997
“A Copa do Mundo consegue na paz aquilo que as nações só alcançam na guerra: a identidade coletiva da pátria.”
John Andrews, ensaista do The Economist, citado por Joelmir Betting, em sua coluna de 10.07.98
“Graças à seleção, todo mundo virou brasileiro. Disse-me um conhecido: – ‘É a única vez em que me sinto uma nação’. Enquanto durar a euforia do escrete, seremos um país ocupado por brasileiros.”
Nelson Rodrigues, idem
O que a Copa do Mundo consegue no Brasil, literalmente parar um país do tamanho do nosso e colocá-lo diante de um objetivo único, torcer pela seleção, nenhum outro fenômeno consegue. É um fato que, pela magnitude, repetido a cada quatro anos, por certo não encontra simular em nenhuma outra parte do planeta.
É verdade que o futebol, hoje, é o esporte mais popular do mundo (a ponto de a FIFA, como lembra Joelmir Betting, ser maior do que a ONU), provocando grandes manifestações de massa como aquelas flagradas em praça pública, pela televisão, na Dinamarca e na Holanda, quando suas seleções jogaram com a brasileira. Nada, porém, comparável com o ocorrido aqui.
Por que isso? O que explica esse caráter transcendental que o futebol adquire para nós? Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo nacional, ele mesmo um torcedor fanático do Fluminense e da seleção brasileira, chegou a dizer que depois das conquistas das Copas de 58 e 62 “de repente, sentimos que o brasileiro deixava de ser um vira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lata entre as nações“. A Folha de São Paulo, em editorial na sua edição de 13.07.98, avança numa interpretação:
“… no futebol, traços culturais arraigados, como a improvisação, o jeitinho, a ginga e a espontaneidade, deixam de representar um déficit ou uma inaptidão do país ao progresso e funcionam como uma vitória sobre os países mais desenvolvidos, cujos êxitos estão associados à racionalidade, à disciplina, ao cálculo frio.”
Donde se pode concluir que futebol é coisa séria, praticamente uma questão de segurança nacional (ver o exemplo do valente, simpático e competente time da Croácia, terceiro colocado). Não pode, portanto, ser tratado da forma amadora (para não dizer desleixada e irresponsável) como foi, descobrimos agora cada dia mais espantados, nesta Copa. Profissionalismo é a tônica da nossa era e o futebol não pode ficar de fora. Foi o profissionalismo, muito mais do que o talento dos jogadores, que deu o merecido título à França e deflagrou a maior manifestação de massa no país desde a libertação de Paris na Segunda Guerra (uma evidência, segundo o presidente Jacques Chirac, de que a França “sentia a necessidade de reencontrar sua alma“).
Depois da ressaca da derrota, é preciso reiniciar seriamente o trabalho, com a consciência de que, pela importância que tem o futebol brasileiro no mundo, estaremos sempre na mira dos adversários. O capitão Dunga, de volta ao Brasil, resumiu esta necessidade de uma forma muito precisa:
“A cada ano, os times se preparam melhor para jogar contra o Brasil. Precisamos ser mais organizados, mais perseverantes e mais humildes. (…) Não podemos ficar parados no tempo.”
Passado de glórias não ganha jogo. Cartolagem ultrapassada também não. Sem profissionalismo, seriedade, competência e, claro, criatividade, o destino hoje em dia de qualquer empreendimento humano, do futebol à atividade empresarial, está fadado a um fracasso que, dependendo do tamanho da ilusão investida, pode vir a ser retumbante.