Todos os anos verifica-se a mesma coisa: nos dias de carnaval ocorre em todo o país uma verdadeira explosão de criatividade, observável nas fantasias, nas brincadeiras, nos enredos, nas músicas. Basta dar uma volta pela rua ou olhar a televisão para não ter dúvidas. Uma questão intrigante: por que essa criatividade não se expressa de forma similar no trabalho? Por que as mesmas pessoas que durante esses dias de “liberdade” esbanjam criatividade, no dia-a-dia do trabalho são tão menos inventivas, para dizer o mínimo?
O Brasil é reconhecido no mundo como país do carnaval e do futebol, da espontaneidade, da alegria, da criatividade. Um país que culturalmente cultiva a beleza.
“Em tudo que vocês se metem, a preocupação é de fazer bonito”.
Motorista de táxi parisiense sobre o Brasil, durante a Copa do Mundo de Futebol, citado por Carlos Heitor Cony na sua coluna da Folha de S. Paulo, 28.03.98.
O motorista estava falando do que ele conhecia: futebol e carnaval. O que, diga-se de passagem, já é algo notável. Em marketing, uma das coisas mais valiosas que existem é a fixação de uma imagem na cabeça do cliente. Quando isto acontece, o cliente lhe concede o benefício da generalização. Ele conhece o futebol, sabe do carnaval e generaliza: a preocupação com a beleza é total. Pobre motorista enganado. Não sabe ele que a dissociação entre essas manifestações de caráter predominantemente lúdico e o trabalho é que é (quase) total.
Por quê? Uma hipótese, composta de três evidências complementares: (1) a palavra trabalho é derivada da palavra latina tripalium, uma espécie de chibata usada para administração de castigos; (2) a cultura religiosa atribui ao trabalho características de castigo divino decorrente do pecado original (“ganharás o pão com o suor do teu rosto”) ; (3) no nosso processo de formação social, o trabalho ocupou predominantemente um lugar aviltado, só “pegava no pesado” quem não tinha posses, quem não era “filho de algo”, quem era obrigado pela força da chibata. Resultado: numa nação jovem, latina, escravocrata e com fortes traços de religiosidade, o trabalho ocupou um lugar amaldiçoado, lugar de expiação, de provação, de penitência. Um suplício que precisava, inclusive, do seu contraponto: o folguedo, o carnaval, a brincadeira redentora (“a gente trabalha, o ano inteiro, por um momento de sonho, pra fazer a fantasia de rei ou de pirata ou de jardineira, pra tudo se acabar na quarta-feira” – na visão poética de Vinícius de Moraes e Tom Jobim). Como conseqüência, tem-se a dissociação perigosa: trabalho e monotonia de um lado, brincadeira e criatividade do outro.
Interpretações sociológicas à parte, uma coisa é fundamental: no mundo sumamente competitivo em que vivemos, do ponto de vista empresarial, esta dissociação é mortal. A responsabilidade por demolir essa linha divisória é diretiva, gerencial. O trabalho pode e deve ser lúdico, criativo, realizador, estimulador e, como conseqüência, mais produtivo. Ao gerente cabe estimular que isto aconteça, sem esquecer que qualquer relação é de mão dupla. Se tem gente pouco criativa no trabalho (em detrimento da criatividade de fora do trabalho), tem gerente pouco incentivador, autoritário, protocolar, burocrático. Mas que, provavelmente, no carnaval, é bastante criativo, expansivo, descontraído…
Felizmente no país já existem muitos exemplos de que é possível ser tão criativo no trabalho como fora dele. Resta ampliá-los, consolidando uma cultura, entre nós inovadora, na qual prazer e trabalho sejam não só compatíveis como articulados, transformando em marca, de fato, o que já é reconhecido, lá fora, de direito.