Sociedade contraditória, a brasileira. Enquanto, por um lado, temos altos índices de desemprego e uma distribuição de renda catastrófica, por outro, travamos um debate acalorado em círculos influentes da mídia sobre a diminuição da carga de trabalho e o direito ao chamado ócio criativo.
Para início de qualquer conversa, é preciso não esquecer que o Brasil detém, segundo avaliação de diversas instituições internacionais que atuam na área, o triste título de país mais desigual do mundo. Segundo o IPEA, nos anos 90, os 10% mais ricos da população brasileira detiveram 50% da renda total, índice maior que o verificado no Zâmbia, no Quênia, no Paraguai, na Turquia etc. Atualmente, a estimativa é de que 30% da população detém mais de 70% da renda nacional, enquanto os 70% mais pobres detêm menos de 30%. É esta situação que, aliada à falta de crescimento econômico constante na casa de, no mínimo, 5% ao ano (o que permitiria a absorção do contingente de pessoas que entram no mercado de trabalho e a inclusão de uma parcela dos atuais desempregados) tornam o quadro social mais do que crítico, explosivo. Qualquer discussão sobre carga de trabalho não pode deixar de considerar este quadro.
No outro extremo, temos a discussão sobre o papel do trabalho na sociedade pós-industrial, o direito ao ócio criativo etc. É uma discussão estimulada pelas idéias do sociólogo italiano Domenico De Masi, autor de vários livros sobre o assunto: (1) “A Sociedade Pós-Industrial” (Editora SENAC); (2) “Desenvolvimento sem Trabalho” (Editora Esfera); (3) “O Futuro do Trabalho – Fadiga e Ócio na Sociedade Pós-Industrial” (Editora José Olympio); (4) “O Ócio Criativo” (Editora Sextante/Salamandra). Apesar de ter vindo diversas vezes ao Brasil, só da última, quando lançou a edição brasileira do excelente “A Emoção e a Regra – Os Grupos Criativos na Europa de 1850 a 1950” (Editora José Olympio), é que De Masi caiu nas graças da mídia com palestras, entrevistas na Exame e participação no programa Roda-Viva. Suas idéias, embora atraentes, são polêmicas e suscitam uma discussão complexa numa sociedade como a brasileira, onde, além do grande déficit de oferta, o trabalho é um valor, no mínimo, ambíguo (ver a respeito o C&T 264 “Explosão de Criatividade“).
A observação “de dentro” da realidade empresarial e do trabalho no Brasil, permite formular uma hipótese – o que deve ser questionado é menos a dimensão quantitativa e mais a qualitativa. Ou seja, importa menos a quantidade e mais a qualidade do trabalho. Em primeiro lugar, ter um trabalho digno; depois, poder fazê-lo com satisfação, com gosto, com empenho, com determinação.
“Dá para trabalhar 100 horas por dia e ter uma vida pessoal saudável. O problema é que as pessoas confundem qualidade do lazer com quantidade de horas de lazer. O que é preciso é estar satisfeito com o que se faz. (…) Eu trabalho muito e descanso muito. Sempre tiro 30 dias de férias de uma vez e exijo que aqueles que trabalham comigo façam o mesmo. Às vezes levo trabalho para casa. Mas não considero que ler um livro de negócios seja trabalho. Para mim é lazer porque gosto de aprender.”
Paulo Ferraz, ex-presidente do Banco Bozano, Simonsem, revista Você S.A., agosto 1998
Não se põe em dúvida a importância e o direito ao lazer. Mas é conveniente, também, definir o que é que se entende por lazer e por trabalho. Talvez a questão tomasse outro rumo se, como, no exemplo citado, o trabalho fosse associado ao prazer, pois é justamente a relação com o prazer que torna o trabalho fonte de realização ou, até, pode “estragar” o lazer. Qualquer um sabe o que pode significar ter que participar de uma atividade “de lazer” (um “churrasco” dominical, num lugar onde não se queria ir) por obrigação, para cumprir um dever social, sem prazer.