Depois de dois números dedicados ao grave problema da insegurança e da violência no país, o Gestão Hoje, como não poderia deixar de ser pela data de sua circulação, dedica o presente número ao carnaval.
O vigor do carnaval no Brasil, pelo menos nos chamados “grandes centros da folia” (Rio de Janeiro, Salvador e Recife/Olinda) é uma coisa que ainda está por merecer mais reflexões e debates. Há algo de profundamente intrigante e misterioso em toda a mobilização popular que se vê nesses dias de descontração.
O que faz, por exemplo, com que uma multidão de centenas de milhares de pessoas (alguns falam em um milhão de participantes) passem horas a fio desfilando num bloco (considerado o maior do mundo) no centro do Recife, no sábado de carnaval, num espetáculo absolutamente indescritível e, para quem nunca viu (e até para quem viu), inacreditável? Ou o que faz com que aquela multidão compacta se aperte pelas ruas estreitas de Salvador atrás de todos aqueles trios elétricos durante os três dias de carnaval? Ou, ainda, o que faz com que uma população inteira organize durante o ano todo e termine por expor, em apresentação inacreditavelmente longa para uma multidão de espectadores presentes e remotos (pela TV), algo como o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro?
Respostas simplistas como “o brasileiro gosta de samba” ou “não resiste a um festejo”, não valem. As opiniões dos intelectuais divergem. Vão de um extremo a outro. Vejamos, por exemplo, a opinião sempre sarcástica do economista e diplomata Roberto Campos:
“Haverá salvação para um país que se declara ‘deitado eternamente em berço esplêndido’ e cujo maior exemplo de dinâmica associativa espontânea é o Carnaval?”
Roberto Campos, 1917-2001, economista brasileiro
Opinião semelhante é esposada por muita gente que acha o carnaval uma espécie de manifestação bárbara e incivilizada, própria de um povo que ainda não evoluiu o suficiente para se emancipar desses tipos de folguedos e dedicar a parte nobre de sua energia ao trabalho duro.
Outra parcela, talvez minoritária, pensa de maneira oposta, como é o caso do sociólogo Roberto Da Matta que, inclusive, baseou boa parte de sua obra na apologia do carnaval como manifestação, ao mesmo tempo, única e paradigmática da cultura brasileira.
“Se, como minha obra demonstra claramente, as coisas mais sérias do povo brasileiro são o jogo do bicho, a cachaça, o Carnaval e o futebol, e se os nossos intelectuais sempre olharam para fora (ou, o que dá no mesmo, para dentro, com óculos de fora), eles jamais poderiam estudar, filmar, pintar ou escrever sobre essas coisas!”
Roberto Da Matta, revista Continente Multicultural
É possível que a virtude, nesse caso, esteja mais para o meio que para os extremos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Todavia, é digna de repetição a observação feita pelo sociólogo italiano Domenico De Masi, ao final de sua badalada obra “O Ócio Criativo” (editora Sextante, Rio de Janeiro, 2000), referindo-se ao Brasil. Não deixa de ser curioso observar o contraste com a afirmação de Da Matta sobre a incapacidade dos intelectuais olharem para dentro. É preciso que um olhe de fora para que determinadas coisas fiquem claras.
“Em nenhum país do mundo a sensualidade, a oralidade, a alegria e a ‘inclusividade’ conseguem conviver numa síntese tão incandescente. (…) Todas essas coisas se tornam leves graças a uma disponibilidade perene e uma alegria natural, expressa através do corpo, da musicalidade e da dança.”
Domenico De Masi