Passada a surpresa inicial, a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara continua dando o que pensar. Através da cortina de preconceito e quase galhofa tecida pela cobertura-padrão da grande imprensa, é preciso procurar ver o que há de novo nessa eleição.
Tales Alvarenga, em sua coluna da Veja desta semana, vai além do comentário óbvio e fácil em relação a um assunto que está a requerer mais reflexão do que tem conseguido suscitar.
“Tentar transformar Severino na Geni do Congresso é uma tolice. Sacrifica-se o bode preto do agreste pernambucano no altar da incorreção política, permitindo-se que todos os outros pareçam moralmente impecáveis (…) Severino é apenas a parte do Congresso que não aparece na foto.”
Tales Alvarenga, Veja, 02.03.2005
Junto com todas as críticas que possam ser feitas às teses defendidas e opiniões emitidas por Severino Cavalcanti, uma qualidade não se lhe pode negar: ele diz, de forma simples e direta, o que pensa, uma característica raríssima de encontrar em políticos profissionais.
Além disso, a inusitada eleição trouxe à luz uma questão crucial para a consolidação e o desenvolvimento da democracia no Brasil: a urgência no avanço naquilo que se convencionou chamar de reforma política. O imoral troca-troca de partidos políticos protagonizado antes, durante e depois da eleição não deixa dúvidas de que se nada for feito, corremos o sério risco de transformar o processo político numa ficção muito maior do que ele já é. Basta dar uma olhada nas pesquisas que aferem a credibilidade das instituições políticas para se ter uma idéia do tamanho do problema.
Alfredo Sirkis, político carioca, secretário de Urbanismo do Rio de Janeiro, em recente artigo, aborda a questão de uma maneira muito pertinente e precisa.
“O aspecto mais importante da eleição de Severino Cavalcanti, herói do baixo clero parlamentar, não foi a sucessão de erros políticos do PT, seu afã de vencer os fisiológicos pelo fisiologismo… Importante não foi a peripécia em si, mas a questão estrutural: a democracia no Brasil não resistirá mais uma década com o atual sistema de voto proporcional personalizado, partidos fracos, troca-troca frenético e frouxa costura de alianças pelo atendimento de interesses pessoais. Pelo sistema atual, caminhamos para a ingovernabilidade, a pulverização do poder político, a descaracterização do processo eleitoral e a desmoralização da democracia.”
Alfredo Sirkis, Jornal do Brasil, 23.02.2005
O paradoxal de tudo isso é que, como parece acontecer com todas as questões relevantes no país, só quando ocorre uma coisa grave, quando o carro enguiça, quando tudo parece ter descambado para a ruína, é que, justamente aí, os avanços acontecem. Aos “trancos e barrancos”, na feliz expressão aplicada de Darcy Ribeiro (a propósito desta peculiaríssima característica do processo social no Brasil ver os números 271, 516 e 517), vamos avançando, às vezes com o próprio motorista empurrando o veículo, resvalando pelo acostamento, andando por estradas vicinais, aos solavancos, mas, estranha e curiosamente, para a frente.
A eleição da nova mesa diretora da Câmara funcionou como um desses episódios limite. Depois dela deverão acontecer mudanças no processo político. Por certo, menores e mais acanhadas do que gostaríamos de ver, mas mudanças para melhor. O Brasil de hoje é melhor do que o Brasil de 10 anos atrás que, por sua vez, estava melhor do que há 20 anos. Pior do que poderia e deveria estar, mas melhor do que estava, com certeza. Podemos e devemos lamentar a velocidade e o esforço, não o avanço.