Impressionante o poder do papa João Paulo II. Mesmo morto e enterrado conseguiu fazer o sucessor. O cardeal Joseph Ratzinger, eleito papa Bento XVI, foi durante mais de 23 anos o braço direito de Karol Wojtyla nas questões ligadas à doutrina. O jornalista John Allen Jr. que escreveu uma biografia do cardeal Ratzinger refere-se a ele como “o arquiteto intelectual do papado de João Paulo II”.
Foi o responsável, na condição de prefeito (ministro) da poderosa Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício da Inquisição) do Vaticano, pelo severo enquadramento de mais de 150 teólogos “rebeldes” mundo afora, dentre eles os responsáveis pela Teologia da Libertação na América Latina. Cumpriu com tanto afinco sua missão que era chamado pela imprensa especializada de “panzerkardinal” (uma alusão às temidas divisões blindadas panzer do exército nazista) e de “rottweiller de Deus”.
Um dos punidos pelo cardeal Ratzinger com o “silêncio obsequioso”, a deposição da cátedra e a proibição de escrever, falar e viajar, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, expoente da Teologia da Libertação, que conheceu o novo papa em Munique antes dele assumir em Roma a Congregação convidado que foi por João Paulo II, diz a seu respeito o seguinte:
“Foi meu professor no doutorado de teologia na Europa. Ajudou-me a publicar minha tese de doutorado, arrumando editora e pagando a edição. Era extremamente gentil, fino, mas tem o defeito de não ter cordialidade do pensamento. Tem o pensamento duro, dissipador, um excesso de certeza que não se abre ao aprendizado. Sua consciência é dura, desprovida de misericórdia. Espero que, como papa, seja mais próximo do professor que tive do que do cardeal que conheci depois.”
Leonardo Boff, Istoé, 27.04.2005
Em virtude desta atuação, de um modo geral, toda a imprensa já antecipa que o resultado do papado de Bento XVI será, na melhor das hipóteses, uma continuidade, mais conservadora ainda, do período João Paulo II.
Todavia, antes dos julgamentos apressados, é importante considerar alguns aspectos relevantes da questão. O principal deles é que o tempo da Igreja Católica não é o tempo deste mundo. Ela contempla a eternidade e tem demonstrado, ao logo da sua história, um notável senso de perpetuidade baseado, justamente, na capacidade de conservar e de aceitar, com cautela, mudanças quando elas se tornam inevitáveis.
“A igreja é uma instituição de mais de 2.000 anos. (…) O seu segredo se encontra provavelmente no fato de apenas lentamente ter incorporado exigências que se tornaram imprescindíveis com o decorrer do tempo. A sua sabedoria consiste precisamente no seu conservadorismo, na manutenção de suas instituições, na sua organização jurídica e na sua abertura cautelosa às mudanças. Essas não podem ser abruptas (…) Uma igreja que mudasse constantemente, confundindo a moda com as exigências do tempo, sucumbiria rapidamente.”
Denis Rosenfield, filósofo da UFRS, FSP, 20.04.2005
Portanto, ainda é cedo, apesar das evidências pretéritas, para dizer se foi um erro dos cardeais eleger um par conservador. Pode não ter atendido aos anseios imediatos da mídia mas pode ter ido ao encontro das necessidades atuais da Igreja. Além do mais, é preciso sempre considerar a possibilidade de superação daqueles que assumem grandes desafios. Bento XVI pode surpreender como surpreendeu João XXIII, tido como conservador e eleito como ele, pela idade avançada, para um mandato de transição. Vamos ver.