No excelente documentário “Vinícius” (2005, direção de Miguel Faria Jr.), o poeta Ferreira Gullar, falando do amigo Vinícius de Moraes, disse que gostava dele porque, considerando que a vida é invenção, Vinícius tinha inventado que ela era bela, que o amor existia e que o sujeito tem mais é que “viver louco de paixão”. Ele diz preferir esse tipo de invenção a outras que tratam justamente do oposto: a vida é amargura, o amor é só sofrimento, etc. Depois, em outra entrevista, Gullar explica melhor sua tese da vida como invenção:
“Eu, ao longo dos anos, cheguei à conclusão de que a vida é uma coisa inventada. Que nós inventamos a nossa vida e nos inventamos. Cada pessoa se inventa. O cara se inventa poeta, se inventa pintor, se inventa músico, se inventa como qualquer pessoa comum do mundo, porque, quando nascemos, não somos ninguém, não temos nem nome. É a cultura que vai nos formando, e a sociedade toda é uma invenção, uma coisa criada. Os valores, a religião, a ciência são coisas inventadas, não são coisas da natureza. Nós somos natureza, nosso corpo é natureza, mas nós vivemos no mundo da cultura. São valores que nos constituem.”
Ferreira Gullar, poeta maranhense
Para ilustrar, Ferreira Gullar dá o exemplo de sua própria vida. Nascido em São Luis do Maranhão em 1930, Gullar se transfere para o Rio de Janeiro em 1951 onde “inventa” uma trajetória de poeta, jornalista, teatrólogo e crítico cultural, ao mesmo tempo em que intensifica a militância política que o levaria ao exílio em 1971. Passou a ser nacionalmente conhecido com o “Poema Sujo”, escrito no exílio. Em outra entrevista Gullar fala da “invenção” do seu próprio nome.
“Gullar é um dos sobrenomes de minha mãe, o nome dela é Alzira Ribeiro Goulart, e Ferreira é o sobrenome da família, eu então me chamo José Ribamar Ferreira; mas como todo mundo no Maranhão é Ribamar, eu decidi mudar meu nome e fiz isso, usei o Ferreira que é do meu pai e o Gullar que é de minha mãe, só que eu mudei a grafia porque o Gullar de minha mãe é o Goulart francês; é um nome inventado, como a vida é inventada eu inventei o meu nome.”
Ferreira Gullar
Depois da morte de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar é considerado o maior poeta brasileiro vivo. Sua trajetória e sua tese de que a existência é uma invenção são importantes exemplos de como é possível exercer o protagonismo na vida e não ficar ao sabor da “correnteza”. Ele alerta, todavia, para o fato de que a eficácia da invenção depende também da sua qualidade e da aceitação pelos outros.
“Todo mundo se inventa, mas não é gratuito. É preciso ter as qualidades para o papel que nos inventamos. Se o cara se inventa filósofo, é porque quer e porque descobre dentro dele que é capaz de ser isso. É uma mistura de acaso e de vontade, mas também de necessidade. Isso é um aspecto. O outro aspecto é o seguinte: a invenção que você quer fazer de você mesmo tem que ter o reconhecimento do outro. Se você diz que é músico, mas o que compõe não é bom, você não consegue se inventar como músico.”
Ferreira Gullar
Trata-se de um importante testemunho sobre a “autonomia” de cada um e o potencial de criação e não conformismo, sintonizado, claro, com o “mercado” (a aceitação do “público”). Com talento, iniciativa e atenção ao “mercado”, como disse o pensador brasileiro Guerreiro Ramos, “o futuro é um campo aberto de possibilidades”.