Doutrina Bush coloca em xeque ordem internacional

 
A primeira bomba lançada caiu mesmo foi sobre o Conselho de Segurança da ONU. De quebra, colocou em xeque todo o sistema internacional de regulação montado depois da Segunda Guerra Mundial.
Na condição de nação belicamente mais poderosa do planeta (seus gastos militares são maiores do que os de todos os outros países juntos), os EUA, a julgar pelos passos recentes, pretendem se consolidar como a nação hegemônica no mundo e uma espécie de “xerife” da humanidade, de uma forma perigosamente arrogante.
Só para se ter uma idéia do poderio norte-americano e da desproporção da ação contra o Iraque, como bem destacou o economista Gilberto Dupas, da USP, no GloboNews Painel da semana passada, só um porta-aviões, dos oito que estão baseados nas proximidades da zona de conflito, custou US$ 10 bilhões. O PIB do Iraque pode ser calculado em torno de US$ 30 bilhões, o valor de três porta-aviões, portanto. (A propósito, o PIB do Afeganistão deve girar em torno de US$ 8 bilhões, menos do que um porta-aviões).
Essa postura imperialista sem disfarces baseia-se no que já se convenciona chamar de “Doutrina Bush”. Formulada pelo grupo de assessores mais próximos do presidente (o vice, o secretário de Estado, a assessora de Segurança, o presidente da CIA e outros), é uma espécie de versão em escala planetária da velha máxima: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Quem não gostar, que engula, quem for tido como ameaça, que se cuide.
Pela Doutrina Bush, uma figura caricata e inegavelmente tirânica como Saddam Hussein cai como uma luva para “justificar” uma operação punitiva, de proscrição de “armas de destruição em massa” e de “salvação do povo iraquiano” para encobrir interesses estratégicos de natureza política e geo-econômica.
As razões de natureza política são relativamente fáceis de entender: depois de ter satanizado Saddam durante um bom tempo, as chances reeleitorais de Bush seriam muito baixas se, durante a campanha, o ditador iraquiano estivesse ainda no poder.
As razões econômicas são capitaneadas pelas apetitosas reservas petrolíferas do Iraque, com o agravante da situação política potencialmente perigosa da Arábia Saudita, principal aliado norte-americano na região do Golfo.
No rastro dos atentados de 11 de setembro, os serviços de inteligência dos EUA flagraram tenebrosas transações financeiras de membros da família real saudita com a organização terrorista de Bin Laden. Se, por um azar do destino, a sucessão do poder se der com a ascensão de algum fundamentalista hostil, os EUA se veriam em maus lençóis, numa região de onde importam metade de suas necessidades externas de petróleo. 
Diante desse quadro, com o reforço do ainda indefinido quadro do Irã, a política de segurança nacional norte-americana, reforçada pelo Doutrina Bush, só recomendam uma coisa: a instalação de uma base permanente dos EUA na região. E, mais uma vez, dada à sua extraordinária performance como chefe de estado irresponsável, Saddam se oferece como um excelente pretexto para ser deposto.
O resultado prático disso tudo são toneladas de bombas despejadas diariamente sobre a cabeça dos moradores de Bagdá e uma enorme força de guerra rumando para a capital com o objetivo explícito de derrubar Saddam do poder e instalar um governo de ocupação, secundado por um grande programa de “reconstrução” do país.
Esse talvez seja a único trunfo de Saddam: atrair o inimigo para uma guerra urbana desgastante, com grande sofrimento da população civil e acentuadas perdas de vida nas forças terrestres, quem sabe na tentativa de comover a opinião pública mundial e, sobretudo, a norte-americana.
Os próximos dias dirão com mais clareza o que ocorrerá e os desdobramentos no curto prazo. Enquanto isso, o mundo fica em suspense, com a certeza de que terá, logo após, que repensar toda a ordem internacional.