Menos esgoto do que telefone:problemas do século 19, desafios do 21

 
Duas notícias veiculadas no fim de semana passado dão uma mostra eloqüente de como o Brasil é um país de contrates e problemas sociais de grande magnitude.
A primeira, baseada na divulgação pelo IBGE da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2002, expõe dois resultados surpreendentes, ainda que não inéditos: (1) O Brasil tem mais domicílios com televisão (89,9%) do que com geladeira (86,7%); e (2) é maior a quantidade de residências com telefone (61,6%) do que a servida por redes de esgoto (46,4%).
A segunda, reportagem da revista IstoÉ/1776, dá conta de que o Distrito Federal tem o maior IDH (Ã?ndice de Desenvolvimento Humano) dos estados brasileiros (0,849) e que o IDH da região do Lago Sul de Brasília é de 0,945, o maior do mundo, se tomado isoladamente, superando o da Noruega (0,942), nação campeã do índice.
O interessante é que o cálculo do IDH é feito com base em três variáveis: a renda, a longevidade (expectativa de vida de uma pessoa ao nascer) e a educação. E um dos fatores que fazem o IDH de Brasília tão alto é que o Distrito Federal tem 88% das residências servidas por rede de esgoto e 66% desse esgoto, tratado. Esse fato contribui decisivamente para o aumento da expectativa de vida. A deficiência de esgoto é, portanto, um transtorno grave, muito bem assinalado pelo engenheiro pernambucano e consultor da área de transporte Germano Travassos:
“O mais dramático da falta de saneamento, diferentemente de outros serviços essenciais como saúde, segurança e transporte por exemplo, é que as pessoas não se apercebem do mal que ela faz. Essa é uma das evidências de que a globalização é, infelizmente, excludente para países como o nosso. Permanecemos com necessidades de terceiro mundo, porém expostos a uma ideologia de consumo de primeiro mundo. Com o agravante de que é, justamente, pela TV que essa pressão consumista se exerce com mais força, sobretudo de forma subliminar.”
Germano Travassos
Realmente, num país tropical, quente e úmido, com as características do nosso, é uma inversão de valores ter mais casas com televisão e telefone do que com geladeira e saneamento. Mais pela insuficiência das respostas elementares a problemas como conservação de alimentos e saúde pública (infra-estrutura básica), equacionados pelas nações que hoje ostentam melhor IDH desde o final do século 19, do que pela abundância de soluções massificadas na segunda metade do século 20 e que estão sintonizadas com os desafios do século 21, como é o caso das telecomunicações (televisão e telefone, inclusive).
Clifford Ericson Junior, também engenheiro pernambucano, reconhecido especialista em saneamento, com trabalhos realizados em diversas regiões do país, tem uma definição muito direta sobre a importância do trabalho que faz:
“Fazer esgoto é tirar o verme da barriga do menino.”
Clifford Ericson Junior
Crianças com saúde, tendem a ser adultos longevos e a constituírem países e regiões com IDH melhor, sobretudo se educados e, bem mais provável, com renda em ascensão.
Fora desse ciclo virtuoso que começa com a necessidade quase insuspeitada de saneamento básico, o que se tem são países atrasados ou injustos, como o nosso que é campeão mundial de desigualdade. Mesmo que, contraditoriamente, tenham, também, constituído a proeza de ter desenvolvido um sistema de telecomunicações avançado (requisito indispensável para o novo século), inclusive com o número de celulares ultrapassando o de telefones fixos em mais de 1 milhão de unidades.