A morte de Dorival Caymmi relembra porque somos o país da delicadeza perdida

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O mês de agosto terminou deixando a Música Popular Brasileira mais pobre com a morte do compositor Dorival Caymmi. Um dos gigantes da MPB, Caymmi foi personagem marcante da extraordinária explosão criativa que, no século 20, fez da música brasileira um dos movimentos artístico-culturais mais densos e diversificados do mundo. Talvez a nossa maior expressão cultural.

“A Música Popular Brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora.”

Mário de Andrade, 1883-1945, escritor paulista

Nascido na cidade de Salvador em 1914, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1938 de onde firmaria uma carreira como compositor que o colocou ao lado de figuras como Noel Rosa, Pixinguinha, Ary Barroso, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Caetano Veloso, verdadeiros pilares da MPB. Foi um gigante sem rebuscamento, um compositor original e com produções de tanta qualidade que parecem, paradoxalmente, não ser suas. Francisco Bosco no pequeno mas muito bem escrito livro da coleção Folha Explica, “Dorival Caymmi” (Publifolha), afirma dele o seguinte:

“Os sambas de Caymmi possuem aquela que seja talvez a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônimas.”

Francisco Bosco, “Dorival Caymmi”, Publifolha

O que é interessante observar em Caymmi, tanto em seus extraordinários sambas-canção, quanto nas não menos extraordinárias “canções praieiras”, uma criação sua absolutamente original, é a visão de uma região (a Bahia) e, por extensão, de um país mais puro, quase inocente. Um país ainda não irremediavelmente tocado pelo violento processo de urbanização que fez do Rio, de Salvador e de todas as grandes cidades brasileiras verdadeiros turbilhões onde a delicadeza se perdeu.

“O país da delicadeza perdida é o Brasil da bossa nova, do doce balanço a caminho do mar, do cinema novo, de JK, quando tudo ainda parecia que seria.”

Sérgio Dávila, jornalista, Folha de S. Paulo, 23.11.03

Caymmi foi testemunha e protagonista desse tempo. Um tempo de delicadeza que depois se perdeu mas que ele manteve vivo na sua música. Tanto o samba modernizado por Noel, quanto o samba-canção que se seguiu, quanto a Bossa Nova da qual foi um dos precursores, quanto o samba de protesto, quanto a Tropicália dos baianos seus conterrâneos, até esse, para usar a expressão do poeta Fernando Pessoa. “não sei o quê moderno”. Passou por todos, compondo cerca de uma centena de músicas excepcionais. Tão excepcionais que parecem coisa de outro mundo.

“Não parece coisa feita por gente: parece o canto das coisas em si.”

Arnaldo Antunes, músico

A morte de Caymmi é também a morte de uma testemunha desse país de um outro tempo. Onde as coisas pareciam mais simples e bem mais fáceis do que são agora. Um país que da Copa do Mundo de 1970 até agora passou de 90 milhões para 190 milhões de habitantes. Que inchou as cidades e que está requerendo novos recursos para tratar e resolver seus novos problemas. Um país que perdeu a inocência e a delicadeza mas que, felizmente, ainda tem a música de Caymmi para ajudar nessa tarefa tão grande quanto difícil de  consertar o que precisa ser consertado e seguir adiante.