Pelo fio da navalha

Em termos de emoções econômicas, o ano de 1999 está se saindo muito melhor do que a encomenda. Depois das difíceis, embora surpreendentemente rápidas para os padrões estabelecidos, negociações com o FMI e o G-7 (que preencheram o vazio político entre o final das eleições e a posse do presidente reeleito), o ano iniciou quentíssimo com o rastilho de pólvora displicentemente aceso por Itamar Franco. Queda de Gustavo Franco, o guru da âncora cambial; tentativa de desvalorização controlada do real, com o frustrado alargamento da banda promovido pelo novo presidente do Banco Central; flutuação do câmbio, imposta pelo mercado no dia seguinte; euforia da bolsa de valores, com a maior alta do Plano Real; nervosismo no mercado de câmbio, com a moeda norte-americana fechando sua primeira semana livre com uma valorização acumulada no ano de 99 em torno de 40%; forte incerteza quanto ao futuro.
O que vai acontecer daqui para a frente? Do ponto de vista econômico, no estágio em que a situação chegou, qualquer coisa pode acontecer. O Plano Real está caminhando pelo fio da navalha. O governo, fiel ao seu estilo de fazer política econômica, trocou uma “aposta” por outra. A anterior, abandonada quando o câmbio flutuou, baseava-se na manutenção da âncora cambial para deixar a inflação literalmente derrubada pelo peso do real valorizado, pelo fluxo generoso de capitais externos, pelas altas reservas em dólar e pela concorrência dos produtos importados baratos, até que fosse substituída pela âncora fiscal, lastreada pelo equilíbrio entre receitas e despesas que seria conseguido após realizadas as reformas da previdência, administrativa e tributária. O problema é que essa “aposta” passou a exigir, depois das crises do México em 94 e da Ásia em 97, juros cada vez mais altos para atrair os capitais externos. O resultado para as contas públicas desses juros mais altos do mundo no período foi a explosão do déficit (que chegou a 8% do PIB em 98) e da dívida (que está, hoje, na casa dos R$ 350 bilhões). Além disso, a “fixação reeleitoral” do governo foi adiando as reformas e, por conseguinte, a âncora fiscal, crise externa após crise externa, até que veio o calote da Rússia e os investidores cairam fora, trancando os seus cofres para os países emergentes. Sem ter como fechar as contas externas do país (serão necessários cerca de US$ 60 bilhões em 99), o governo bateu às portas do FMI que atendeu o pedido de ajuda em troca de um ajuste fiscal de execução muito exigente.
A nova “aposta” consiste, ao que tudo indica, em deixar o mercado encontrar a taxa de equilíbrio do câmbio, controlar o impacto sobre a inflação com juros ainda altos num primeiro momento, aprovar o ajuste fiscal, renegociar o acordo com o FMI, administrar a instabilidade no primeiro semestre e retomar o crescimento no segundo semestre. Não restam dúvidas de que, vista assim, é uma aposta de melhor “qualidade” do que a anterior, embora menos consistente do que ela no seu início. De qualquer modo, é uma “aposta” que necessita crucialmente da âncora da credibilidade, tanto interna, quanto externa. E, nesse particular, o governo não vai bem. A boa vontade da opinião pública interna e a dos formadores de opinião internacional está se esgotando, sendo que a externa, até, muito mais rápido. Se essa nova “aposta” não der certo, só resta ao presidente mudar tudo e começar o jogo de novo, com nova equipe, nova política e muito mais trabalho para manter as coisas funcionando.
O importante, nesta confusão toda à que o governo foi arrastado por mérito próprio, é entender que o país e sua economia real é muito maior e mais forte do que qualquer conjuntura formal adversa. O pior que pode acontecer é o Plano Real fracassar e o sonho de estabilidade ser adiado por algum tempo. Entretanto, uma coisa é certa: vamos continuar trabalhando e o país não vai parar. Já temos uma economia minimamente estruturada e um sistema político suficientemente fortalecido pelo exercício da democracia representativa para encontrar alternativas que evitem o impasse. Todos torcemos fervorosamente para que o pior não aconteça. Mas, se vier, não será o fim do mundo. Talvez o início de um melhor.