Imitando os veículos de mídia eletrônica (rádio e TV), o Gestão Hoje poderia iniciar esse número assim: “interrompemos a nossa programação para comentar para os nossos leitores as últimas peripécias dos políticos sul-americanos”.
De fato, a programação era neste número tratar da terceira e última parte da série sobre o “tripé do desenvolvimento sustentado” (educação integral e de qualidade; crescimento econômico continuado; e segurança pública eficiente) (ver números 584 e 585). Todavia, é impossível seguir a programação original quando, em apenas uma semana, somos bombardeados com: (1) a greve de fome de Garotinho; (2) o decreto de Evo Morales expropriando o petróleo e o gás boliviano; (3) a Operação Sanguessuga da Polícia Federal prendendo políticos e assessores acusados de falcatruas no orçamento da União para a compra por municípios de ambulâncias superfaturadas; e (4) entrevista de Sílvio Pereira, ex-secretário-geral do PT jogando mais lama no ventilador da política nacional.
Esses fatos recentes só confirmam a tese original do economista Luciano Coutinho, já desenvolvida em números anteriores (ver Gestão Hoje 575, 576 e 582), de que, hoje, o problema estrutural do Brasil é político (e, pelo que se pode ver agora, também de boa parte da América do Sul).
Tudo isso deixa uma desagradável sensação de déjà vu. De coisa antiga que já deveria ter ido para os porões da História mas que se repete para deixar envergonhada a cidadania, longamente construída, de forma mais consistente, ao longo das duas últimas décadas.
“Práticas políticas que pensávamos já terem sido superadas ressurgem com grande força. Usos e costumes considerados mortos e enterrados, renascem em pleno vigor. Governos populistas, de retórica nacionalista. Práticas clientelistas e assistencialistas. Exploração da miséria e da boa fé de largas parcelas da população.”
Lúcia Hipólito, comentarista política, CBN, 03.05.06
A arguta comentarista Lúcia Hipólito vai, em sua locução semanal na rádio CBN, ao cerne da questão. Todos esses movimentos, cada um a seu modo, constituem-se, em última análise, num desrespeito à democracia na forma em que ela está constituída.
“Estamos assistindo ao renascimento de governos baseados em líderes carismáticos, que têm relação direta com as massas, que passam por cima das instituições, constituições, contratos, partidos políticos, e tudo aquilo que faz parte do cardápio dos modernos regimes democráticos.”
Lúcia Hipólito, comentarista política, CBN, 03.05.06
No que diz respeito ao Brasil, em particular, ela faz uma observação que dá o que pensar: o regime democrático não deu, ao grosso da população, as respostas que ela queria para questões elementares e básicas.
“No caso do Brasil, tivemos 21 anos de ditadura e agora estamos completando 21 anos de volta à democracia. E a gente se perguntando: o que foi que a redemocratização fez pelo pobres deste país nos últimos 21 anos? Quase nada.”
Lúcia Hipólito, comentarista política, CBN, 03.05.06
Isso posto, podemos vislumbrar os riscos que o regime democrático corre. Não mais de golpes militares mas de golpes de populismo mesclados com corrupção. É preciso, pois, redobrar a vigilância.